30 julho, 2006
De tempos em tempos, preciso me encontrar e relembrar certas escolhas que fiz. Há poucas semanas da estréia do espetáculo "Da Criação da Cena", onde assino a direção, tantas coisas burocráticas necessitam da minha atenção que quase esqueço os reais motivos pelos quais dedico toda minha energia nisso. Como esquecer um caminho que fui eu mesma que escolhi percorrer? Não vou colocar aqui as dores e as delícias dessa escolha, mas sim, colocarei um texto que sempre me ajuda a retomar o caminho. Essas palavras são como as migalhas de pão que deixei pelo caminho para não me perder. Ah... e olhar pra trás faz bem demais!

"PRÓLOGO:
Atriz entra em cena.
Dá duas voltas em círculo largo pelo palco, olhando a platéia. É um toureiro apresentando-se na arena. Ou um saltimbanco conclamando, em silêncio uma multidão para assistir a uma narrativa. Um herói desfilando sua vitória: é uma atriz encontrando-se com seu público, apresentando seu corpo, seu olhar, que conduzirão a lenda a ser descorrida.

Pisa no chão, retirando do planeta Terra a energia, joga-se contra o ar, aquecendo de fogo o encontro dos olhares cruzados.
Seu passeio é um convite para que se juntem em uma oração, que inicem o íntimo laço de contato que é o rito do teatro.

Arremessa sua primeira fala como um projétil contra um muro que marcasse a argamassa com furos a cada mínimo deslocamento das ondas sonoras advindas dos fonemas, silabas, palavras do discurso.

Faz uma pausa e nela uma pequena oscilação corporal, como um desequilibrio de pernas e braços, por causa do peso da cabeça... ah sempre a cabeça pesando, pensando, a dúvida: haverá mesmo o ideal, a postura perfeita, haverá mesmo esta ordem no universo que perseguimos ou estamos soltos no caos?

Desiste e explica perturbada, com os braços quase dando nó entre si, tal a confusão, que está cada vez mais difícil de fazer teatro.

A atriz remexe em sua insuficiência. Acima de tudo, deve lembrar que sentiu logo antes de abrir-se a cortina, onde buscava, durante seu aquecimento corporal, no escuro do palco fechado, o caminho da escada de incêncio para a fuga covarde. Quando mais uma vez se perguntava: por que mandou pintar seu nome na placa frontal do teatro? Pôs preço de ingresso, divulgou na rádio, na tv no jornal? Olhe bem, ator, atriz, os urdimentos do palco acima da sua cabeça... ah sempre a cabeça... Olhe o palco vazio. Não foi o mesmo que ocupou a genialdade das peças de Shakesperae, a audácia de Moliére, os culhões de Artaud? Os gênios do teatro que já se foram e deixaraam este palco já não podem mais fazer nada por você. Você é quem tem que honrar suas memórias. Vai a luta. Manda ver. Execute o ritual.

CENA ÚLTIMA: NÃO ACABOU-SE ( É A ESSÊNCIA )
A atriz desamarra um nó da faixa que lhe enlaça a cintura e que envolve seu pescoço quase como uma forca, suspira tranquilizada de poder concluir com liberdade.

Refere-se à tentativa orgânica de precisar passar cenicamente algo que lhe toca a emoção. Há no alívio, o de soltar o último sinal de aprisionamento, um outro, maior, que é o de saber que está em todos os processos, montagens, temas, exercendo só a perseguição permanente de aperfeiçoamento de, provavelmente apenas em uma frase, logo uma primeira que tivesse dito em teatro na sua vida e que fosse esta: "Bem ou mal, acabei os meus deveres."

DENISE STOKLOS in Mary Stuart
1987
 
posted by Alissandra Rocha at 12:52 |