16 abril, 2006
Você não pode solucionar a vida. A vida não tem solução. A gente encontra soluções dramáticas (cênicas) e põe fim à peça. Você não precisa consertar o planeta.

Dentro da dramaturgia, sempre foi levantada a questão do quanto o mithos, a essência arquetípica de uma narrativa, está presente no instante da criação cênica.
Uma visão do que constrói o texto dramático é aquela que entrevi com duas figuras com que tive o prazer de Dramaturgar: José Rubens Siqueira e Gabriela Rabelo. Zé e Gabi, como acabamos chamando-os após cessadas as formalidades da relação aprendiz/mestre, reviravam o texto do palco com os olhos de quem vê uma paisagem e a coloca em um quadro. Há mil maneiras de se fazer isso, mas o mais importante é que aquele que fitar o quadro deve sentir o mesmo impulso de quem transformou paisagem em tela.
O mito, segundo as milhares de discussões acerca do assunto, não é pensado, não surge do exercício racional, e nem precisa disto.
E antes que alguém julgue se isto é poesia, eu afirmo: É, e no seu mais alto grau. A arte dramatúrgica existe graças à poesia, e se o canto das musas a cada um surge de uma forma diferente, ela não deve ser refreada por nada até que se complete e interiorize.
Comecemos com a palavra. Esta é fruto de uma cultura, e em seus diversos graus de entendimento, como linguagem, signo, expressão, idioma, código ou nome, carrega por si só um enorme peso, e aquele que joga e brinca com a palavra em seus diversos ângulos, ou mesmo aquele que as despeja sem contenção sobre o papel, já obtém sem esforço um calhamaço de significados e significantes suficientes para que surja, repentino e sem avisos, a face do universo interno da criação.
As diversas culturas criaram necessidades estruturais específicas conforme aquilo que seus idiomas melhor expressam. As línguas saxãs possuem predominantemente narrativas onde a repetição temática de uma idéia a reforça. As línguas greco-latinas caminham essencialmente em uma trilha obscura, onde cada passo o leva a um destino invisível na névoa, até que abruptamente este revela-se. As línguas indo-mongóis costumam ter uma certa simplicidade que minimiza a importância da linearidade, e privilegiam o detalhamento externo do gesto e imagem em seu palco devido à impossibilidade da língua de dizer tudo o quanto é preciso com o idioma.
E então a idéia que moverá o texto, seu assunto ou idéia central. Há duas formas disto surgir: você pensa no que quer dizer ou então te aparece na frente algo do qual não poderá fugir. De qualquer forma, isto agirá conforme um tema escolhido para tal, caso isto também não apareça junto do restante do pacote. O tema é inespecífico (pode ser “viagem”, por exemplo, ou violência urbana, embora neste caso ela possa ser mais do que o tema, se for aprofundado).
Especificar ambos é bom pois quando engripa e não sai nada, ajuda a recuperar a idéia inicial e desvendar caminhos do que queremos contar. Não é obrigatório, entretanto. Isto te guia e vai fazer a peça funcionar. Não a tempestade cerebral ou os seus cabelos brancos em criá-la. O tema NÃO IMPORTA. Ouse. Chute o pau da barraca. Tem que levar à beleza tragicômica, à falha do extremo. Despontar o Mithos. Botar o dedo na ferida.
E de onde vem a criação?
Mozart dizia que a inspiração para ele vinha como um soco, numa só porrada. E se matava em noites para passá-la para o papel antes que fugisse, de uma só vez, sem dormir ou comer.
Intermediário, o que Hermeto Pascoal faz é surreal quanto a inspiração. Ela é quase uma iluminação mística serena, um dom. Sem receber de um susto as composições, ele convive com aquele universo até que chega o momento onde ele permite ser levado ao mundano.
Já em outro extremo, “O mágico de Oz” tem uma estrutura que é racional, tem cara de que foi muito calculada e ainda assim tem todo o peso do mundo. E funciona.
Não importa como surge o mote que te arrasta ao criar, se é um iceberg que rebenta na sua frente ou o resultado de uma escolha ou necessidade acerca do que deve ser dito: Quando você está com o terreno arado para receber, seu pensar está conectado ao que o cerca para sacar o mundo em uma só frase, em um papel na rua, em uma conversa, o “CRIAR” já está presente. É o impulso, o soco de Callíope, um 7 numerológico. E, apenas depois de sugado o momento da criação, podemos nos preocupar com a ordenação eficaz da arte.
Lembrete: “Não adianta me ensinar (Racional), eu é que tenho que aprender (iluminado)”
O eficaz é racional. O criado não. Cada qual tem seu papel no momento criativo, e um não pode ferir o que o outro traz. A coerência, a correta pontuação e escolha de palavras para tornar à prova de más interpretações, tudo isso aparece no momento posterior ao do surgimento da imagem que vamos passar ao palco, nesta visão do processo dramatúrgico.
Assim, a preocupação com a profundidade do tema torna-se irrelevante. Conte a mais simples história tribal. Se ela trouxer a conexão com o que a cerca, se a linguagem for afiada, se o seu cerne criativo, não importa como tenha vindo, cumpre com o que despontou como essência da história, o “Mithos”. Desencana de salvar o mundo ou de dar o melhor e mais original tema do planeta. Ele não precisa ser absurdamente rico, ou complexo. No fim das contas, tudo se reduz ao tenebroso “E DAÍ?”. Então, relaxa. Deixa sair algo do seu objetivo. E mais, entregar-se. Dar-se ao texto, à carpintaria da peça, e você se doar a ela. E taca a lata de lixo do teu lado. Lembre-se: é a punheta que te faz aprender a trepar. Dedicai-vos. Tire o Davi daquele monte de mármore, se entregue ao pesado.
E quando menos esperar, sua historinha tribal se torna “Édipo Rei”.


Ricardo Avarih é biólogo, ator e dramaturgo.
 
posted by SuperNova at 21:49 |